Extra Digital

‘Nasceu no Brasil uma nova espécie de terrorismo’

Juiz que combateu cartéis na fronteira com o Paraguai analisa as causas do novo banho de sangue do tráfico << A maior parte desses crimes é transnacional. A repressão não pode ser regionalizada >> << O aumento da crueldade é comum quando se trata de d

JOÃO ARRUDA jarruda@expresso.inf.br

Morte, morte, morte! As notícias da fronteira BrasilParaguai vêm cheias de sangue. Morrem anônimos, que se tornam conhecidos por bilhetes em seus corpos, tal qual um RG pós-túmulo, morrem autoridades. Difícil identificar quais os culpados. Entre vítimas e algozes. A cocaína que voava, e voa, de lá, a despeito da queda de alguns aviões, nos coloca no mesmo patamar. Vítimas. Neste Papo Reto, o ex-juiz Odilon de Oliveira, que teve a cabeça a prêmio depois de condenar tubarões do tráfico como Fernadinho BeiraMar, fala do banho de sangue. E não é otimista. Até porque ele mesmo não pode sair de casa como gostaria, visto que perdeu direito à escolta que era feita pela Polícia Federal. Como dizem os versos da Legião Urbana, os assassinos estão livres, nós não estamos.

O senhor acredita que, neste momento, a tendência é que o banho de sangue aumente na fronteira?

Se os dois países não pegarem pesado, sem trégua, sim. O Paraguai é uma mina de ouro para a maior facção paulista. No Paraguai, há vários grupos de traficantes, muitos deles com integrantes do Brasil. Todavia, nenhum deles, em estrutura, concorre com o de São Paulo. O outro grupo grande é do Rio, mas também menor que o de SP, que se opõe, com violência, a qualquer grupo que tenha atuação na área, ainda que não ofereça risco de dominação. Basta que lhe faça concorrência capaz de lhe reduzir os lucros.A facção está no Paraguai há uns 20 anos, seguramente, onde encontra, nas drogas, em sequestros e no contrabando de armas, fontes para sua estrutura econômico/financeira. Em 2004, eles participaram do sequestro de Cecília Cubas, filha do político Raul Cubas. Juntamente com a quadrilha paulista, atuaram as FARC e integrantes do Partido Pátria Livre, do Paraguai.

Por que o Paraguai é uma mina de ouro?

Os motivos são as drogas, principalmente cocaína vinda da Colômbia, Bolívia e Peru, maiores produtores mundiais. Maconha também. O Paraguai, com seus cinco mil hectares de plantação de maconha, é o segundo maior produtor mundial, perdendo apenas para o Marrocos, que já cultiva com irrigação do solo.O Paraguai, após a Lei do Abate (que permite que aviões que entrem sem autorização no espaço aéreo brasileiro sejam abatidos), transformou-se num grande entreposto de cocaína, onde chega de avião e de onde sai em pequenos carregamentos. O Paraguai também possui, em média, cinco mil hectares do cultivo de maconha. Para agravar, são três safras por ano. Cada hectares, por safra, produz três toneladas. As três safras somam nove toneladas, multiplicadas por cinco mil, totalizando 45 mil.

Como combater todo esse poderio?

A maior parte desses crimes (drogas e armas, principalmente), é transnacional, envolvendo o Brasil e o Paraguai. A repressão, pois, não pode ser regionalizada. Não basta que o Brasil combata aqui, e o Paraguai reprima lá. Exige-se atuação conjunta, padronizada, uniforme. Uma estratégia comum. Há necessidade de flexibilização de certos itens da soberania nacional. Exemplo: criação de uma área de livre circulação, como se fosse, dos dois lados, uma minifaixa de fronteira de 500 metros, 1km, onde policiais de lá e de cá possam, em serviço, andar armados. Quando eu era o juiz federal em Ponta Porã, isto passou a ser comum, após várias tratativas com a participação desse magistrado. O Ministério Público e o Judiciário têm que participar e até tomar a iniciativa em relação a esse tipo de postura. Isto não afeta a independência de ninguém.

O senhor tem críticas também à estrutura do aparelho de repressão...

Aumentar o contingente da Polícia Federal na faixa de fronteira é indispensável. Essa faixa corresponde a 150 km de largura, totalizando 29% do território nacional, quase um terço. A rigor, teriam que atuar nela pelo menos 29% do contingente da polícia federal. Deve ter, no máximo, 15%. Ora, são 2.532.900 km quadrados de extensão territorial extremamente crítica quanto ao tráfico internacional de cocaína e de armas. São 10 países fazendo fronteira com o Brasil. Só a Bolívia, com seus 3.125 km de fronteira com o Brasil, supera a dos Estados Unidos com o México. Colômbia (maior produtor mundial de cocaína), Bolívia (segundo maior), Peru (terceiro maior) e o Paraguai, segundo maior produtor mundial de maconha, somam, junto, em torno de 9 mil km de linha de fronteira com o Brasil. Nesse quase um terço do território nacional, existem menos de 30 delegacias de Polícia Federal e uns quatro ou cinco postos, estes com dois ou três agentes. A maior parte dessas delegacias está com padrão muito abaixo do minimamente necessário, a começar pela de Ponta Porã, a principal para o enfrentamento do PCC na fronteira Brasil/Paraguai. Está em péssimo estado, não comportando sequer os poucos policiais lotados naquela cidade.

O cenário, então, é pessimista.

Esse conflito nunca irá se acabar, salvo se não mais houver produção de drogas. Isto é impossível. Pode haver uma grande redução, dependendo do Brasil e do Paraguai. Tem que haver um trabalho conjunto, uniformizado, atacando-se não só as organizações, mas também seu patrimônio. Descapitalizar é fundamental. Anos depois da morte de Jorge Rafaat (que era chamado de o Rei das Drogas), nem mesmo seu cadáver foi deixado em paz. Seu corpo foi profanado e queimado. Acredita que os bandidos brasileiros tornaram-se mais cruéis à medida em que afinaram o contato com seus colegas da máfia italiana?

O aumento da crueldade é comum quando se trata de disputa de poder, não só com outras organizações, mas também com o Estado repressor. A crueldade é para intimidar os concorrentes, a sociedade e as autoridades. O modus operandi do PCC, no Brasil e no Paraguai, faz nascer na América do Sul uma nova espécie de terrorismo. Ato terrorista, segundo o FBI, é o emprego de violência, física ou psicológica, contra pessoas, instituições ou bens, intimidando o Estado, autoridades ou a população, por motivação religiosa nacionalista, política, étnica ou moral. Este é um conceito quase que planetário. Numa versão bem simples, uma das principais diferenças entre o crime comum e o terrorismo está no fim desejado. No delito comum, o assassinato de um desafeto é um fim, esgotando-se a ação em si mesma, com a morte. No terrorismo, o homicídio é um meio para se atingir um fim. Em 2006, o PCC praticou 1.032 ações terroristas, ateando fogo em fóruns, em promotorias, queimando ônibus cheios de pessoas etc. Com essas atrocidades, o PCC foi responsável pela morte de 184 pessoas naquele ano. Foram 119 policiais e agentes penitenciários e 65 integrantes do próprio grupo, estes tidos como infiéis.Aquelas ações, e outras ocorridas ao longo dos anos, não foram um fim em si mesmas, mas meio para o grupo conquistar domínio e vantagens patrimoniais. Os policiais e agentes penitenciários assassinados não eram inimigos pessoais do PCC. Qualquer um que estive em situação fragilizada morreria.

Como está sua rotina atualmente, já que o senhor sempre esteve com a cabeça a prêmio por causa dessas organizações criminosas?

Trancado dentro de casa, pois, em 2019, perdi a segurança. Quando saio, no máximo duas vezes por mês, formo uma escolta particular, com policiais aposentados ou de folga. De começo de 2019 até hoje, nunca mais sai de Campo Grande (MS). Existe uma ação na Justiça Federal, patrocinada pela Associação dos Juízes Federais do Brasil e pela Associação dos Magistrados Brasileiros, para que a segurança volte. Risco de vingança. Já houve dois incidentes. s t

EXTRA

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2021-10-24T07:00:00.0000000Z

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