Extra Digital

RISCOS CALCULADOS

Em novo livro, a educadora Daisy Turnbull destaca os benefícios de deixar as crianças correrem alguns potenciais perigos

Malu Echeverria

Que a superproteção faz mal às crianças, todo mundo sabe. No entanto, a educadora australiana Daisy Turnbull, especialista em Psicologia positiva, vai mais longe. No recém-lançado “50 Risks to take with your kids: a guide to building resilience and independence in the first 10 years” (“50 Riscos para correr com seus filhos: um guia para construir resiliência e independência nos primeiros 10 anos”, em tradução livre do inglês), da Editora Hardie Grant, ela explica por que os pequenos precisam correr certos riscos para se aperfeiçoar por completo. Como assim? “Queremos que nossas crianças desenvolvam a capacidade de erguer a si mesmas ao cair, de saber quando pedir ajuda e a quem pedir, mas também de ser confiantes para resolverem seus problemas sozinhas. O crescente número de doenças mentais e de casos de ansiedade entre os jovens hoje nos mostra como essas habilidades são necessárias, e a única maneira dedesenvolvê-las é deixar as crianças serem crianças”, escreve a autora, que também é colunista de educação do jornal britânico The Guardian. Como mãe de Jack, de 7 anos, e Alice, de 5, Daisy reconhece que falar é fácil. Por essa razão, em uma conversa com uma colega, ela teve a ideia de escrever uma espécie de manual com uma lista de riscos que promovem o crescimento como um todo, além de dicas para enfrentá-los na prática. De maneira leve, a educadora consegue convencer até os pais mais céticos sobre incentivar os pequenos a encarar desafios que ela classifica como físicos, sociais e de caráter (estes últimos estão relacionados a aspectos emocionais). As sugestões vão desde deixar a criança subir em árvores até fracassar em alguma atividade, e incluem itens para os adultos também (como incluir os pequenos nos afazeres domésticos). “Permita que eles tentem, caiam e falhem. Ame-os e dê o apoio necessário, mas acredite em sua resiliência também. Eles estão mais preparados para essa jornada do que imaginamos”, afirma a autora. A seguir, confira a entrevista na íntegra.

Escalar árvores, explorar ambientes e até mesmo aprender a lidar com fogo (com supervisão, claro) são algumas das atividades que você recomenda no livro. Mas como você deve ouvir de muitos pais: isso tudo não é perigoso?

Daisy Turnbull: Sim, as crianças se machucam o tempo todo. Porém, em relação a subir em árvores, por exemplo, as estatísticas nunca diferenciam lesões leves, como arranhões, de lesões sérias, como braçosquebrados. Como pais, assumimos que os dados se referem sempre a acidentes graves, no entanto, eles são muito, muito raros.

Por que classificou os riscos por fases, e não por idade?

Os estágios são baseados na idade, porém, à medida que as crianças se desenvolvem, as fases contam mais do que a idade. Nos primeiros meses, há uma grande diferença entre um bebê de 4 meses e um de 6 meses. Mas não observamos tanto isso uma vez que eles aprendem a andar e a falar. Acredito que dividir os riscos por fases permite exibilidade maior.

Sendo assim, como saber se meu filho está pronto para, no fim das contas, enfrentar determinada situação?

Você tem de olhar de perto para o seu filho para saber do que ele já é capaz. E também perguntar a ele (no caso dos maiores). Se o pequeno fica aflito com a ideia de andar até a esquina sozinho, não force. Agora, se ele se entusiasma com a possibilidade de ter maiores responsabilidades, você deve honrar esse fato, pois é uma oportunidade de desenvolver propósito e autoestima.

Você diz que os riscos físicos — ainda que as sugestões sejam voltadas às crianças, como brincar ao ar livre — quem tem de correr são os pais, não os filhos. Como assim? É porque é dos pais a decisão de se distanciar e permitir que os filhos corram esses perigos. As crianças não vão escalar árvores se elas acharem que é amedrontador. Os pequenos medem seus medos baseados nas reações dos adultos.

O que as crianças ganham, então, quando têm a permissão de cair e levantar, por assim dizer? Resiliência, bem como a habilidade de medir seu próprio “papel” de risco e força.

Seja no playground ou no parque, queremos que nossos filhos se arrisquem, mas não se machuquem. Como encontrar um equilíbrio?

Acho que temos de aceitar que se machucar faz parte. Meu filho quebrou o pé, esses dias, ao pular de uma rampa na praia. É uma decisão difícil, mas me deixa mais feliz: ele se divertir e aprender (o que pode e o que não pode fazer) do que não fazer nada.

Além dos riscos físicos, você também incluiu no livro os emocionais. Qual a razão para isso?

Acredito que estamos vendo por todo o planeta uma geração de crianças que nem sempre tem a oportunidade de sentir emoções, nem de expressá-las de maneira adequada. Todos nós sabemos que falhas ocorrem mais dia, menos dia — nos relacionamentos, no trabalho, na vida. No entanto, quando fazemos tudo pelas crianças, não permitimos que elas pratiquem a resiliência. Em vez disso, devemos deixá-las tropeçar emocionalmente e aprender a se recompor quando tiverem o apoio de uma família amorosa, em vez de vivenciar isso pela primeira vez no mundo lá fora. Claro que não estou falando sobre fracassos que envolvem algum trauma — e, sim, de algo como não ser escalado para o time da escola ou ser reprovado em um teste: não tente amortecer essas experiências, mas faça com que a criança entenda que elas fazem parte de uma vida plena.

E um dos riscos emocionais que os pais devem correr, na sua opinião, é delegar trabalhos domésticos aos filhos. Oque todo mundo ganha comisso?

Pode ser enervante deixar a criança dobrar suas próprias roupas, mas de que outra maneira ela vai aprender a organizar seu armário? A ideia não é fazer dela um escravo, mas evitar que ela o trate como um. O risco maior aqui é o pai ou a mãe perder a paciência, e não o filho fazer algo errado. Você ressalta a Teoria da Higiene, segundo a qual pessoas que vivem em ambientes limpos demais são mais propensas a desenvolver certas doenças, como alergias. Em sua opinião, a pandemia da Covid-19 pode deixar os pais ainda mais cautelosos e propensos a proteger os pequenos dos “perigos” sanitários com maior rigor?

Com certeza. Como meu livro foi editado durante o período de lockdown, discutimos sobre a possibilidade de remover essa parte. Mas estudos mostram que a sujeira e os germes, de modo geral, são benéficos para os seres humanos. Sabemos que os índices de asma estão aumentando por causa do uso em excesso de desinfetantes e, embora as crianças não tenham se resfriado tanto este ano (em função do isolamento social), observamos também um crescimento do índice de doenças gastrointestinais, uma vez que elas não são mais expostas a nenhum micro-organismo (a ciência já provou que o equilíbrio da microbiota intestinal favorece a saúde).

Quando alguém diz a uma mãe para falar sobre os riscos, logo ela imagina que se trata de lembrar o filho de tomar cuidado. Mas essa sugestão, como você define na conclusão do seu livro, vai além, certo? À medida que a criança cresce, acredito que, além de alertar sobre os riscos, também devemos discutir sobre eles. Isso porque, ao conversar com outros adultos, ela desenvolve a intuição e a capacidade de julgar os perigos relacionados à própria segurança emocional. Se subir em árvores é um exercício sobre os riscos físicos, aprender a dialogar com respeito pode ser útil em um mundo de polarização nas redes sociais mais para a frente, por exemplo.

De todas as situações que você citou no livro, qual considera a mais difícil para os pais? E para você, enquanto mãe?

Depende do pai e da mãe. Para mim, é deixar que meus filhos participem dos trabalhos domésticos. Porque acho mais fácil simplesmente fazer do que pedir ajuda a eles, explicar por que têm de participar, esperar que façam as atividades no tempo deles e, invariavelmente, ter de concluir o trabalho eu mesma. Mas eu sei, afinal escrevi um livro sobre isso, que tenho de permitir que eles façam as coisas sozinhos para que aprendam enquanto crescem, e assim não terei de fazê-las para sempre.

Por fim, qual o problema de evitar que os filhos corram qualquer tipo de risco? Poupar os filhos de tudo é um risco imenso. Favorece a ansiedade e a depressão, porque as crianças podem se sentir inúteis. Além disso, elas não serão capazes de se virar quando adultas.

BEM-VIVER

pt-br

2021-10-24T07:00:00.0000000Z

2021-10-24T07:00:00.0000000Z

https://extra-globo.pressreader.com/article/281874416611147

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.