MUITO BEM NA PRÓPRIA PELE
Às vésperas de completar 46 anos, a atriz comemora com personagens simultaneamente em destaque na TV, no streaming e no cinema e afirma estar com a autoestima nas alturas: ‘Tenho me sentido muito mais bonita e poderosa’
TEXTO NAIARA ANDRADE naiara.andrade@extra.inf.br FOTOS SERGIO BAIA (@sergiorbaia) BELEZA WALTER LOBATO (@walterlobato_)
2023-11-19T08:00:00.0000000Z
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PERFIL
‘Agente luta para ter a constância de estar sempre trabalhando, não ficar só nos pingados a cada dois, três anos. Eu nunca tinha imaginado poder ser vista em três papéis ao mesmo tempo. Fui presenteada pelos orixás e pela minha história, pela minha luta. Para uma atriz preta, isso é tão importante, tão potente! São personagens muito preciosas pra mim”, emociona-se Cinnara Leal ao falar sobre a jornalista Cecília, da novela “Fuzuê”, da TV Globo; a médica Fernanda, da série “A divisão”, do Globoplay; e Neila, mulher do comediante e músico homenageado em “Mussum, o filmis”, maior estreia do cinema nacional em 2023. Carioca da Penha, a atriz completa 46 anos na próxima quarta-feira, dia 22, em sua melhor fase na carreira e com a autoestima lá em cima. — Tenho me sentido muito mais bonita e poderosa. Semana passada, fui ao Prêmio Multishow e você não vai acreditar quem veio me elogiar... Sabrina Sato! Falei: “Ah, para! Sabrina, eu já quis ter um corpo igual ao seu e ao da Aline Campos (ex-Riscado). Já quis ser fisicamente como muitas mulheres. Hoje, estou feliz por poder ter me transformado. É muito trabalhoso, exige muita disciplina — afirma: — Pela primeira vez na vida, tenho recebido elogios pelos meus braços fortes, a mulherada vem achando bonito... É tão maneiro isso! Eu chego ao Projac e as camareiras e maquiadoras falam: “Ó, hoje eu fui treinar, hein?” ou “Trouxe a minha garrafinha de água!”. Estou amando essa fase de empoderar a mim e a outras mulheres. Desde que soube da possibilidade de entrar na novela das sete como uma mulher com sede de vingar a morte dos pais, Cinnara decidiu, por conta própria, se preparar: — Comecei os treinos, pra valer, em março. Cecília é boxeadora, e eu também fiz kung fu e muay thai para a personagem. Já tinha praticado capoeira um tempo atrás, quis aprender algo novo. Essas atividades me trouxeram força, noções de autodefesa, postura e determinação — detalha Cinnara, sublinhando que não queria “usar truques em cena”: — Eu poderia chegar ali na hora de gravar e aprender os golpes? Poderia. Mas eu queria muito mais para Cecília, sabia que ela era muito maior do que só um truque. Quanto mais preparada eu estivesse, mais verdade traria. Musculação pesada e alimentação balanceada também entraram nesse processo de fortalecimento físico e emocional: — Deixei de comer pão, frituras e arroz, pausei o consumo de bebidas alcoólicas... Eu sempre bebi bastante, mais até do que socialmente. Hoje, vou a festas e só tomo água. Difícil é ter maturidade em área vip (risos), a gente fica querendo provar tudo. Mas eu estou de parabéns. Não tem desculpa, galera. Quer corpão? Vai à luta! Se externamente a motivação para interpretar Cecília foi o próprio espelho, a inspiração profissional de Cinnara para construir a corajosa jornalista foi Tim Lopes e Valéria Almeida. — Minha personagem começou numa linha investigativa. Ela se coloca em risco, vai pro tudo ou nada. O jornalismo de denúncia é importantíssimo, e o Tim é uma grande referência. Agora, eu não vejo a hora de Cecília ficar parecida com Valéria, minha amiga pessoal, uma mulher risonha... Tem sido só sofrimento pra ela, eu saio exausta das gravações. Por isso que é bom malhar antes — conta a atriz, sendo lembrada pela repórter da Canal Extra que jornalista, no geral, é “bicho preguiça”, não cuida tão bem da saúde: — Vocês malham muito o cérebro! Vamos trabalhar esses corpitchos (risos)! Estou aqui para incentivar. Enquanto a força é característica dominante em seu trabalho na TV, no cinema Cinnara foi dominada pela doçura ao encarnar Neila Gomes, segunda mulher de Mussum, que viveu com o comediante por 22 anos, até a sua morte em 1994. — Ela é muito calminha, fala baixinho... Eu soube que ela comentou com a produção: “Nossa, vocês botaram uma atriz linda para me fazer, eu estou muito feliz!” (risos). Neila é uma mulher que apoiou a grandiosidade de seu marido. Curiosamente, temos a mesma altura, mas ela é de uma elegância que nem eu sabia que eu tinha. Foi lindo descobrir que dá para se posicionar sem alterar a voz — compara Cinnara, que só conheceu a mulher de Mussum pessoalmente na préestreia do filme para elenco e convidados: — Foi quando ela falou diretamente pra mim: “Você conseguiu parecer comigo, né?”. Uma fofa! As filmagens aconteceram na época da pandemia, e eu não podia colocar a saúde dela em risco, é uma senhora. Preferi não encontrá-la, confiei no meu instinto de atriz. Ouvi somente o áudio de uma entrevista que ela havia concedido e captei a doçura da voz. RESISTIR E SORRIR Cinnara se diz emocionada por ter tido a oportunidade de estar no elenco de “Mussum, o filmis”, que “fala sobre como resistir e sorrir sendo artista preto neste país”. E encontra semelhanças entre a sua própria história e a do comediante e músico, interpretado magistralmente por Ailton Graça no longa-metragem dirigido por Silvio Guindane. — O filme é uma lição de esperança, exala amor entre pessoas pretas periféricas. Isso é lindo demais! Hoje, eu tenho a chance de viver tudo isso que estou experimentando porque minha mãe (Neide, de 73 anos) me apoiou desde cedo, sustentou a casa sozinha, financeira e emocionalmente, como a do Mussum fez com ele. Esse é o exemplo de várias mães do subúrbio do Rio de Janeiro, de onde eu vim. Eu queria ser bailarina, e minha mãe falava: “Está bem, mas vai estudar”. Depois, quis ser atriz, e ela insistiu: “Está bem, mas vai estudar”. Em nenhum momento ela me questionou: “Tem certeza de que você não quer ser médica, advogada?”. Ela era professora de História do município e sempre me encorajou a partir dos estudos. Eu só a via à noite. Lembro que eu e meus dois irmãos dividíamos as tarefas de casa. Com 8 anos, a gente já cozinhava. Ela deixava o feijão pronto e a gente se virava para fazer o arroz da janta. Vivendo em conjunto habitacional, em comunidade, nossos vizinhos viram tios, as portas ficam abertas, um ajuda o outro — relata a irmã da engenheira Silvia, de 53 anos, e do advogado Carlos, de 50. Durante a ditadura, conta Cinnara, seus pais, ainda estudantes, foram presos por militarem contra a repressão. — Minha mãe estava amamentando na hora em que foi pega. Ela diz que estava na nossa casinha humilde em Ramos quando eles chegaram, tiraram o meu irmão do peito dela, o deixaram no colo da vizinha e a levaram. Ela ficou detida por uma semana, foi torturada e liberada. Meu pai ficou preso por mais tempo, se exilou na Alemanha depois. Ele dizia que foi muito traumático, que ouvia os estupros das mulheres. E ele veio de uma família tóxica, violenta, ausente de amor. É difícil não me emocionar contando, mas ele viveu longe dos filhos por muito tempo, desde que se separou da minha mãe, quando eu tinha 5 anos. José Leal se tornou um grande artista, músico, escritor, amigo de Chico (Buarque) e de Caetano (Veloso)... Era um homem muito bem relacionado, bon-vivant. Eu fico com pena de a gente não ter vivido junto os bons momentos. E, mesmo com toda ausência, ele sempre torceu muito por mim, me encorajou — detalha ela, que se despediu do pai, falecido aos 77 anos, em Recife (PE), com uma postagem emocionada no Instagram, no último dia 13 de setembro. EM BUSCA DE SEU LUGAR AO SOL Longe das respostas pré-formatadas, Cinnara não confirma quando a perguntam se Mussum era o seu trapalhão favorito na infância: — A verdade é que eu não tinha o hábito de ver TV aos domingos, esse era o dia em que eu precisava estudar. Minha mãe tinha conseguido uma bolsa de estudos para eu fazer balé, então eu dançava à tarde, chegava em casa já muito cansada, fazia só o dever e ia dormir. Aos fins de semana, tinha que estudar de verdade. Além disso, ficamos um bom tempo sem televisão em casa. Até que meu irmão começou a fazer estágio e comprou uma. Quando eu descobri “Os Trapalhões”, achei muito legal. Eu gostava muito dos quatro, não tinha uma preferência. Por mais que o Didi sempre se destacasse, eu me identificava muito com os outros três, porque eles estavam sempre buscando o seu lugar ao sol. Ao se comparar com Dedé, Mussum e Zacarias, a atriz relembra os “nãos” que recebeu na vida. — O primeiro foi com 5 anos. Minha mãe me levou ao Teatro Municipal para um teste de balé, que eu pedi de presente de aniversário. A única escola pública de dança que existia no Rio era lá. A gente pegou um ônibus, chegou, me deram um número, eu fiz uns exercícios e me mandaram embora. Eu não entendi por que estavam me dispensando. Hoje, sei: eu não tinha biotipo para ser uma bailarina do Municipal — lamenta ela, contando situações desconfortáveis e de preconceito pelas quais já passou: — Eu fui muito sacaneada quando criança por causa do meu cabelo. As pessoas tinham nojo dele, falavam que era de Bombril. Quando consegui fazer balé, queria estar na primeira fila e ficava sempre na última. Queria usar sapatilha de ponta e nunca estava preparada. Na adolescência, não gostava de ir à praia porque meu cabelo não molhava direito, tinha vergonha. Cobria o volume do meu corpo porque era muito objetificado, então eu não podia andar na rua de shortinho, tinha que ir com casaco amarrado na cintura... São esses “nãos”, essa não adequação, que incomodam. LONGE DOS ESTEREÓTIPOS Quando foi chamada para um teste de “A divisão”, Cinnara estranhou: — “Como assim o papel não é pra eu viver a mulher do traficante?”, pensei. É interessante como nem a gente consegue se desprender dos estereótipos e se sentir capaz de contar outras histórias, né? Por mais que deseje, sonhe, a gente acaba se boicotando. Sabemos que o mercado é isso aí. Assim, a médica Fernanda surgiu como uma virada de chave na carreira da atriz: — Ao dar vida a uma doutora, entendi a força de deixar de ser objeto e passar a sujeito da própria história. Deixar de ser extremidade e passar a ser centro. A partir daí, consegui negar vários papéis que pra mim não valiam a pena. Quando acabei de gravar a primeira temporada da série, fiquei mais de dois anos sem trabalhar. Mesmo precisando, eu não podia dar passos para trás. Me chamaram para fazer uma garota de programa, por exemplo, e eu não fui, me mantive firme. Hoje, tenho propriedade de mim e da minha história para fazer qualquer personagem — afirma, explicando: — Todo ser humano tem suas questões, mas a diferença entre uma atriz negra e uma branca é que a gente ainda precisa se defender para existir e ser valorizada. Na história — que já está com sua quarta temporada gravada e tem três lançadas na plataforma de streaming —, além dos desafios profissionais, Fernanda enfrenta uma crise no casamento com Santiago (Erom Cordeiro) após sofrer um aborto. Ela ainda quer se realizar como mãe. Cinnara entrega que gravar tais cenas a fez refletir sobre questões muito pessoais. — Nós, mulheres, costumamos ser questionadas: “Quando é que você vai ser mãe?”, “Se você for trabalhar fora, assumir esse cargo, como ficam sua casa e o seu marido?”. Somos múltiplas! Essas dores da Fernanda eu nunca tive, mas comecei a pensar: eu poderia ter vivido uma gestação, poderia ter alguém, poderia estar compartilhando esse amor... Aí, só a terapia e o acolhimento da equipe no set para aliviar. Quando coloquei a barriga, falei “uau!”. Ao mesmo tempo, preciso me descolar da personagem, das escolhas que fiz na vida. Tornar-se bailarina e, depois, atriz eram sonhos prioritários para Cinnara. — Um foi alimentando o outro. Já a maternidade, pra mim, era uma consequência da vida. Eu ia ser mãe em algum momento. Como minha mãe é adotada, eu sempre pensei em adotar. Então, se não sair de mim, esse amor vai acontecer de outra maneira. E, se eu sentir que chegou a hora e não tiver uma parceria de vida, posso ser mãe solo — afirma ela, confessando que atualmente tem sentido vontade de construir uma família: — Venho pensado bastante em comprar a minha casa própria, porque ainda não tenho uma. E dar continuidade à minha ancestralidade, à história linda que minha mãe ensinou pra gente. Ao mencionar suas raízes africanas, Cinnara conta que montou uma empresa chamada Awa Produções: — Em iorubá, “awa” significa “nós”. É uma produtora cultural de impacto social, porque eu tenho certeza de que essa é a minha missão aqui. Nunca fiz arte para parar em mim, para ser uma realização só minha. Sempre lutei muito por todos os trabalhos que conquistei na vida, nunca fui a escolhida (no sentido de ser convidada), mas consegui. A gente precisa entender que nenhum preconceito deve nos resumir e que nenhuma dor deve nos privar de viver qualquer coisa.
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