Espectro nas arquibancadas

Grupos de torcedores autistas e salas sensoriais em estádios movimentam o jogo da inclusão

Mariana Rosário e Nicolas Iory esportesprj@extra.inf.br

2023-11-19T08:00:00.0000000Z

2023-11-19T08:00:00.0000000Z

Infoglobo Conumicacao e Participacoes S.A.

https://extra-globo.pressreader.com/article/282046216833941

JOGO EXTRA

▶ Emoções fortes, calor intenso, barulho incessante e aglomeração na arquibancada. O que parece algo trivial de uma partida de futebol é, também, para torcedores dentro do Transtorno do Espectro Autista (TEA), uma seleção de gatilhos para um episódio de “desregulação” — como é chamada a crise, dentro do TEA, disparada por estímulos indesejáveis, desde frustrações até gritos inesperados ou a impossibilidade de sair de um ambiente lotado. De olho nisso, torcidas organizadas por autistas, e suas famílias, começam a ganhar corpo na arquibancada e motivam uma desejosa movimentação dos estádios, que passaram a, timidamente, criar salas sensoriais — montadas para que o torcedor autista tenha um refúgio do que lhe causa aversão momentânea. Nas arquibancadas, a primeira torcida montada com o objetivo de acomodar esses torcedores foi a dos Autistas Alvinegros, fundada em abril do ano passado por Rafael Lopes e Juliana Prado. Corintiano e acostumado a frequentar estádios desde criança, Rafael foi diagnosticado com TEA aos 33 anos. Juliana recebeu o diagnóstico aos 28. Hoje estima-se que 22 agremiações dão voz ao segmento, uma novidade sem precedentes. A Neo Química Arena, estádio do Corinthians, também deu bom exemplo: o lugar foi um dos primeiros a elencar um setor TEA com atenção especial aos torcedores atípicos. No Fluminense, o movimento “Autistas Flu” celebra o time sob o slogan “Força, glória e inclusão”. O grupo reúne 6,2 mil seguidores nas redes sociais e o time, inclusive, já levou crianças com autismo de mãos dadas com jogadores antes de partidas. No Flamengo, também há movimentações. Marcos Felipe Leal, de 48 anos, pai de um garoto de 14 anos, decidiu criar a torcida Autistas RubroNegros, apesar de seu filho não ter interesse por esporte. Marcos diz que o time Flamengo se dispôs a estender a faixa da torcida em todos os jogos no Maracanã e doou abafadores de som que são distribuídos aos torcedores mais sensíveis a ruídos. Por outro lado, a construção de uma sala sensorial no estádio ainda não foi iniciada, apesar de uma lei municipal sancionada em julho obrigar arenas esportivas com capacidade superior a 5 mil pessoas a terem espaços adaptados para o público com TEA. Botafogo e Vasco também ainda não dispõem de salas sensoriais em seus estádios. O período para adequação previsto na lei é de seis meses — prazo expira em janeiro. Nesse cenário, o São Paulo instalou no Morumbi uma bem equipada sala sensorial para 20 pessoas. O lugar, entre outras coisas, conta com controle de temperatura e pufes para sentar. Há ainda óculos e abafadores. O lugar foi feito em parceria com um centro especializado que usa o local quando não há jogos. O casal Rosângela e Michael Barbosa, pais de Lucas Mike, de 17 anos, e João Pedro, de 5, figuram como parte importante desse processo. A família fundou a torcida Sou Tricolor Autista e ajudou o Morumbi a organizar o espaço. João está identificado dentro do espectro. Entre as manifestações do transtorno, o garotinho tem muita sensibilidade auditiva — o que o faz colocar as mãos no ouvido com frequência. No estádio, porém, se sente em casa, brinca e sorri. — Depois da torcida, nossa vida mudou muito. Fui vendo que essa dor (de receber o laudo do filho), ainda mais após ver a sala sensorial, tornou-se um legado — diz Rosângela. Na mesma toada, em Porto Alegre, o Grêmio iniciou no mês passado os testes em um camarote que será adaptado para torcedores autistas. O espaço terá capacidade para receber até 40 pessoas. Também avança o Allianz Parque, casa do Palmeiras, que planeja tirar do papel uma sala sensorial até janeiro. Enquanto o projeto não vem, o grupo Autistas Alviverdes fica num dos camarores do estádio.

pt-br