‘Elevando o canto contra a intolerância’
Enzo Belmonte recorre à ancestralidade para um disco de samba que tem a força dos pontos de umbanda e faz homenagem aos orixás, nesses tempos de guerra religiosa
JOÃO ARRUDA jarruda@expresso.inf.br
2023-11-19T08:00:00.0000000Z
2023-11-19T08:00:00.0000000Z
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O PAÍS
Enzo Belmonte veio para a batalha, mas bem poderia estar com João Donato e Gilberto Gil cantando “a paz, invadiu o meu coração”. Esse rapaz deu um belo mergulho no samba, mas voltou das águas sagradas dos orixás, do mar, da cachoeira, dos rios. Em “Meu Axé”, ele traz a batucada que, desculpem o clichê, parece o coração da gente. Esse que, como o místico baiano Raul Seixas cantava, “bate quatro por quatro / sem lógica / e sem nenhuma razão”. Sê bem-vindo, Enzo! Fale um pouco, por favor, sobre a concepção do novo trabalho. “Meu Axé” nasceu da junção do meu amor ao samba – na sua verdadeira raiz – com a minha fé nessa luz que me guia, e é justamente por isso que os batuques dos atabaques se misturam com a levada do samba num repertório onde exaltamos, numa grande gira, todos os orixás, de Exu a Oxalá! Esse trabalho é formado e realizado para homenagear as raízes mais profundas do samba, exaltando assim a nossa ancestralidade e, claro, elevando nosso canto contra toda e qualquer tipo de intolerância religiosa, que, infelizmente, está dentro da nossa realidade. Como são suas raízes com a umbanda? Sou batizado na religião, e o que sempre me chamou mais a atenção dentro do terreiro é a fé e a musicalidade. Os pontos cantados e tocados sempre mexeram muito comigo. Minha história com a umbanda começou através do meu tio-avô paterno, Marco Belmonte, e continuou com a minha tia Danielly Belmonte. Eu faço parte da terceira geração da família dentro da religião, e juntos fazemos parte de um terreiro chamado Teom (Tenda Espirita Ogum Megê), localizado na Baixada Fluminense há mais de 60 anos. Ser de uma religião como a umbanda não é uma tarefa fácil por tudo que existe dentro dela, como os fundamentos e obrigações, mas, ao mesmo tempo, é muito prazeroso vivenciar tudo isso. Estamos sempre em busca de saúde, caminhos abertos e felicidade, e isso encontrei na umbanda. Qual é seu orixá e como é sua ligação com ele? Sou filho de Ogum, esse grande orixá que a cada dia me dá forças para trilhar os meus caminhos com humildade, perseverança e fé. A minha inspiração para realizar esse trabalho se deu após um vídeo que gravei no quintal de casa saudando Ogum. Esse vídeo viralizou nas redes sociais, e a partir daí surgiu a idéia do trabalho. Ogum sempre foi a minha principal fonte de inspiração, e agradeço a ele todos os dias por permitir que eu faça o que mais amo: cantar! Você tem contato pessoal com ícones do samba? Quais? E de que maneira? Sim! Tenho o prazer de conviver com as minhas grandes referências dentro e fora dos palcos da vida. Xande de Pilares, por exemplo, é um ídolo e um grande incentivador. Sou grato por cada conselho, aprendizado e momentos com essa grande referência, que é capaz de estender a mão a quem está começando. Tenho também outras grandes referências que considero como amigos que o samba me deu: Dudu Nobre, Juninho Thybau, Gabrielzinho de Irajá, Serjão Loroza, Almirzinho, dentre outros. Tive o grande prazer na vida de ter sido amigo, aprendiz e o último afilhado da eterna Madrinha do Samba, Beth Carvalho, por quem eu sou grato eternamente por ser minha Você é um menino. Acha que está pronto para enfrentar toda a carga de ódio e preconceito que, infelizmente, vem por aí? Temos que estar preparados para tudo. Eu sei que comentários preconceituosos, infelizmente, existem em temas religiosos, sobretudo por ser uma religião de matriz africana. Ou seja, não é só a intolerância religiosa que temos que combater, mas também o preconceito racial. Se esse trabalho ajudar a combater um pouco todo esse preconceito, eu ficarei muito feliz e com a sensação do dever cumprido. Acredito que esse trabalho foi pensado para atingir do mais leigo da religião até um pai de santo, afinal, isso também é uma aula de história. Esses são os primórdios do samba, da construção do Brasil. O meu objetivo é fazer com que as pessoas tenham outros olhares quando se trata de religião de matriz africana. O alerta desse “basta” é também esse projeto ser lançado justamente no Dia Nacional da Umbanda, uma data tão simbólica e importante para o sagrado. Antes mesmo do trabalho, vivenciou essa coisa de ódio, seja nas ruas, seja nas redes? Sempre tem algum comentário desse tipo, levando para o lado da intolerância, mas não é uma coisa que me abala, porém, que me faz parar e pensar. As críticas são muito bem-vindas (e que bom que existam!), mas é preciso saber filtrar o que é crítica e o que é realmente comentário negativo. E é triste ver esse tipo de comportamento nas ruas também. Um país como o nosso, que tem a melhor e mais bonita musicalidade do mundo, uma cultura riquíssima e uma nação miscigenada (das raízes que temos), ainda não venceu o preconceito, seja ele racial, religioso, social e cultural. É triste, mas ainda tenho fé que vamos conseguir! E as participações especiais? Como foram? Tive o prazer de receber o maior Ogã de todos os tempos, e o mais respeitado do Brasil, que é Tião Casemiro. Sempre fui fã do Tião, e, quando o conheci e convidei para fazer parte desse projeto, através do meu querido amigo César Fadel, fiquei muito emocionado e feliz, já que ele também é uma grande referência pra mim. E claro que a participação não poderia ser na parte de outros orixás, a não ser Oxum e Xangô! Para abrilhantar ainda mais, tive a alegria de receber Celynho Show e Flaviana Gomez, dançando e encantando todos nós numa homenagem a toda a falange de Exu e Malandragem, que nos guiam e protegem. E claro, no astral dessa energia toda, o meu terreiro não ficou de fora, por isso, no coro, as minhas irmãs e mães de santo estão presentes levando todo esse axé em forma de música, canção. Estou realizado de cumprir esse trabalho, feito com todo o amor do mundo, e principalmente, com axé no coração.
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